terça-feira, 25 de abril de 2023

Ministro Kássio Nunes Marques expõe tribunal de exceção no STF: ‘juízo universal para determinadas classes de crimes e de investigados e réus’


Ao apresentar seu voto na apreciação da denúncia coletiva contra uma centena de pessoas que foram presas em massa, o ministro Kássio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, explicou que as denúncias nem deveriam ser analisadas por aquela corte, tendo em vista que não há previsão legal de que o Supremo julgue criminalmente pessoas que não têm foro privilegiado, e que, caso analisadas, deveriam ser rejeitadas, já que as denúncias são ineptas por não individualizarem nem descreverem as supostas condutas, e por ausência de justa causa no oferecimento da ação. 

Nunes Marques inicia seu voto lembrando que as pessoas foram presas em massa a mando do ministro Alexandre de Moraes simplesmente porque se encontravam em frente ao QG de Brasília. Nunes Marques diz: “Consigno, desde logo, à guisa de introdução, que as denúncias oferecidas no âmbito do presente Inquérito 4921 se restringiram aos manifestantes que se encontravam no Quartel General do Exército em Brasília e lá permaneceram, não havendo quaisquer elementos a apontar que tivessem participado, sob qualquer forma, dos atos de vandalismo ocorridos na Praça dos Três Poderes no dia 08/01/2023”.

O ministro explica que o Supremo Tribunal Federal não tem competência para julgar aqueles cidadãos, e mostra violações a direitos e garantias fundamentais, como o direito ao juiz natural, a igualdade perante a lei, e a vedação a tribunais de exceção. Nunes Marques afirma: 

“O direito ao juiz natural, previsto no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal, constitui garantia de que a parte responda perante o juiz competente, limitando os poderes do Estado, que não pode instituir juízo ou tribunal de exceção.

Trata-se de garantia fundamental já sedimentada nos Estados Democráticos de Direito ao longo dos últimos séculos.

O juiz natural é aquele regular e legitimamente investido de jurisdição para o julgamento de determinada demanda, conforme as regras de definição de competência estabelecidas no sistema do direito positivo.

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Além de vedar a designação de juízo ou tribunal de exceção (inciso XXXVII), o artigo 5º, inciso LIII, dispõe que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".

Na Convenção Americana de Direitos Humanos – da qual o Brasil é signatário –, o artigo 8º prevê que todo indivíduo tem o direito de ser ouvido por um "juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente pela lei".

A Constituição dispõe, ainda, que determinadas autoridades possuem prerrogativa de foro para o processo penal ou para o processo de responsabilidade (art. 53, §1º, art. 86, caput , e art. 102, I, a e c, todos da CF /1988).

Assim, há que se assegurar aos acusados o direito de responder a processo perante autoridade regularmente investida de jurisdição, de acordo com as regras de competência previstas na Constituição e na legislação infraconstitucional, sendo vedada, em consequência, a instituição de juízo posterior ao fato em investigação, bem assim a instituição de juízo universal perante esta Corte em relação a determinadas classes de crimes e de investigados e réus”.

O ministro Kássio Nunes Marques explicou ainda que a argumentação de que haveria uma suposta conexão com outros inquéritos políticos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes, o que justificaria o julgamento pelo Supremo, não se sustenta, nem pela definição de “conexão”, nem pelos fatos analisados nos inquéritos. 

Após explicar que o Supremo Tribunal Federal não é competente para analisar as denúncias, o ministro passa a analisar as próprias petições, para demonstrar a inépcia das denúncias e a ausência de justa causa para processar os cidadãos que se manifestavam em Brasília. 

O ministro afirmou: “convém destacar a gravidade da instauração de persecução penal fadada ao insucesso, calcada em denúncia genérica e, por isso mesmo, inepta, ou quando ausente a justa causa para o prosseguimento da ação penal, o que, segundo penso, representaria verdadeiro óbice ao contraditório, ao exercício do direito à ampla defesa e violação do princípio constitucional do devido processo legal, extremamente caro ao Constituinte”.

Kássio Nunes Marques explicou que, quando uma denúncia é apresentada, ela precisa seguir uma série de exigências formais, que estão descritas no Código de Processo Penal, o que não ocorreu. O ministro explicou que a peça deveria indicar os elementos essenciais das figuras típicas dos delitos previstos na lei.  O ministro afirmou ainda: “Além disso, é indispensável que a denúncia estabeleça a indispensável vinculação das condutas individuais de cada agente em relação aos eventos delituosos a eles imputados em abstrato”. Nunes Marques mostrou que o Supremo faz questão de que essas regras sejam seguidas quando julga criminosos. 

O ministro explicou que as regras da lei não foram cumpridas no caso da denúncia coletiva em análise: “as peças acusatórias são ineptas, porquanto deixou a acusação de identificar e expor os fatos supostamente criminosos, com todas as suas circunstâncias, notadamente pela ausência de efetiva demonstração de qual teria sido – e como teria sido - a participação dos denunciados nas condutas alegadamente criminosas. Com efeito, as denúncias partem de meras ilações, com fotos e descrições das atividades desenvolvidas no acampamento em frente ao Quartel General de Brasília, sem apontar nenhum comportamento concreto dos denunciados que pudesse dar suporte a tal acusação”.

O ministro Kássio Nunes Marques descreve o teor das denúncias, mostrando que não indicam o que os acusados fizeram: 

“Ao contrário, embora haja extensas denúncias, complementadas por posterior cota ministerial, as peças acusatórias apenas narram, de forma genérica, a gravidade abstrata dos delitos investigados, colacionando imagens na tentativa de demonstrar uma organização e estabilidade nas atividades supostamente criminosas desenvolvidas no referido acampamento. Entretanto, renovando todas as vênias, não há nada nas denúncias que evidencie um mínimo de conexão entre tais fatos e eventuais condutas (comissivas ou omissivas) dos denunciados.

Com efeito, a única alegação constante nas denúncias acerca dos denunciados é a de que acamparam, “até o dia 9 de janeiro de 2023, em frente ao Quartel General do Exército, localizado no Setor Militar Urbano,  em Brasília/DF, incitando, publicamente, animosidade das Forças Armadas contra os Poderes Constitucionais.”

O ministro cita trechos da denúncia e explica: “Como se vê, Senhores Ministros, as peças acusatórias não descrevem de que modo os ora denunciados teriam participado dos eventos criminosos. Em vez disso, a acusação conclui apenas que eles estavam no acampamento do Quartel General e, tão somente por se encontrarem naquele ambiente, teriam anuído com os atos alegadamente criminosos que lhes foram imputados na denúncia.

Nunes Marques acrescentou:  “Ademais, em se tratando de crime cometido em coautoria , presentes o art. 5º, LV, da Constituição Federal e o art. 41 do Código de Processo Penal, exige-se, para o ajuizamento de ação penal, a individualização das condutas  criminosas atribuídas , para que se possa compreender os fatos que são imputados aos acusados e estes possam exercer seu direito ao contraditório e à ampla defesa, no âmbito do devido processo legal. Em outras palavras, cabe ao acusador expor o fato criminoso “com todas as suas circunstâncias”, o que tampouco foi observado pela peça acusatória”

Após explicar que a denúncia coletiva não segue os preceitos legais, o ministro explica que não há justa causa para a denúncia dos acusados. Ele afirmou: “ao examinar os autos para verificação da presença da justa causa na espécie, observo que as investigações, até então, não foram capazes de reunir um suporte probatório mínimo para o recebimento da denúncia, notadamente no que concerne à demonstração da existência dos indícios suficientes de autoria das condutas delitivas imputadas aos denunciados”.

O ministro citou voto de Alexandre de Moraes, que indica: “A justa causa é exigência legal para o recebimento da denúncia, instauração e processamento da ação penal, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, e consubstancia-se pela somatória de

três componentes essenciais: (a) TIPICIDADE (adequação de uma conduta fática a um tipo penal); (b) PUNIBILIDADE (além de típica, a conduta precisa ser punível, ou seja, não existir quaisquer das causas extintivas da punibilidade); e (c) VIABILIDADE (existência de fundados indícios de autoria)”.

Nunes Marques apontou que a própria denúncia afirma que ainda precisa realizar diligências para identificar se aquelas pessoas participaram de algum ato criminoso. O ministro afirmou: “Ora, se a acusação ainda necessita de diligências complementares até

mesmo para identificar o denunciado como autor dos fatos a ele imputados, é forçoso concluir que, na linha da jurisprudência desta Suprema Corte, até o presente momento, não há viabilidade nas denúncias ofertadas pela acusação em virtude da inexistência de fundados indícios de autoria, ressalvada a possibilidade de surgimento de novos elementos aptos a corroborar a formalização de uma acusação”.

O ministro lembrou que cabe ao acusador o ônus da prova, e apontou: “as iniciais não indicam, minimamente, as participações dos ora denunciados nos fatos alegadamente criminosos”.

O ministro Kássio Nunes Marques aponta que as condutas que chegaram a ser descritas não se adequam aos tipos penais apontados. Ao analisar a denúncia por suposta incitação à animosidade entre as Forças Armadas e os poderes constituídos, o ministro afirma: 

“Embora pudesse haver, no acampamento, pessoas com o perfil sustentado pelo Ministério Público, que reivindicavam um golpe de Estado, havia, também, inúmeras pessoas, inclusive famílias com crianças, que lá se manifestavam na defesa de outras pautas que não se caracterizam como atos ilícitos.

Os denunciados no presente inquérito 4.921 não estavam, ao que se apurou, entre as pessoas que cometeram os atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes no dia 08/01/2023. Foram detidos na manhã do dia seguinte, em 09/01/2023, sem esboçar qualquer resistência à diligência policial, conforme demonstram os depoimentos dos policiais militares que realizaram a desmobilização do acampamento.

Em suma, não há elementos de prova que permitam concluir que os manifestantes que se encontravam no acampamento tenham cometido o crime de incitação de animosidade entre as Forças Armadas e os poderes constitucionais.

O ministro mostra que a ausência de justa causa também é notada quando outros crimes graves são mencionados, o que foi inclusive reconhecido pelo próprio Ministério Público, e que, em todos os casos, falta a individualização das condutas. O ministro votou pela rejeição das denúncias. 

O voto do ministro Kássio Nunes Marques foi vencido, e a denúncia coletiva foi aceita pela maioria do Supremo Tribunal Federal. Outra denúncia coletiva contra 200 pessoas já está em análise no mesmo tribunal. Antes mesmo da apresentação de qualquer denúncia, mais de 2 mil pessoas foram presas e “medidas cautelares” seguem em vigor para milhares de cidadãos, que têm suas liberdades e patrimônios restringidos em decisões coletivas, sem individualização de condutas nem devido processo legal. 

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